Caso ainda não o tenha feito, recomendo a leitura do artigo
anterior com as partes 1 e 2 da análise às contas do Serviço Nacional de Saúde
[link].
Nesta terceira parte da análise que agora publico, à semelhança dos
anteriores, não perco muito tempo com rodeios e disponibilizo o sumo do
trabalho através de quadros com os números recolhidos num Ficheiro PDF. A introdução contém alguns reparos técnicos relevantes e enumera
as limitações encontradas no trabalho, seguindo-se um índice de todas as
entidades e respetivos links para as fontes de informação utilizadas. Os
quadros com as informações recolhidas estão divididos pelas várias regiões,
nomeadamente: Norte (N) com 15 entidades, Centro (C) com 9 entidades, Lisboa e
Vale do Tejo (LVT) com 11 entidades e, finalmente, Alentejo e Algarve
(A&AL) com 5 entidades.
A grande condicionante (limitação!) do estudo, tal como
referido na introdução do mencionado ficheiro, é a disponibilidade do relatório
e contas (R&C) de cada entidade, ou seja, a transparência e o rigor da
informação financeira que deve ser obrigatoriamente pública. Pois bem, muitos
dos hospitais não disponibilizam o relatório e contas mais recente (de 2015)
nos seus sites, nem tão pouco o orçamento em vigor (2016). Em 40 hospitais EPE
analisados, 17 divulgam R&C desatualizados (de 2014 ou 2013) e 1 nem sequer
divulga o seu R&C. Não obstante, realizei a análise e publico-a porque os
portugueses devem tomar real noção do que se passa no SNS e do estado em que
ele se encontra. Salvo melhor opinião, as contas estão muito más no papel mas
na realidade (prestando atenção às reservas e às ênfases colocadas pelos ROC
das entidades), elas estarão EVENTUALMENTE muito, mas muito piores.
A PRINCIPAL QUESTÃO:
COMO ESTÃO OS HOSPITAIS?
|
|
|
|
em
milhares de euros |
Valores Médios |
Norte |
Centro |
LVT |
A&AL |
Nacional |
Património |
56 488 |
39 190 |
101 367 |
62 849 |
65 733 |
Fundo Patrimonial |
37 939 |
22 561 |
-5 043 |
9 910 |
19 155 |
Percentagem perdida |
33% |
42% |
100% |
84% |
71% |
|
|
|
|
|
|
N.º EPE no art.º 35.º CSC |
7 em 15 |
5 em 9 |
9 em 11 |
3 em 5 |
24 em 40 |
Conforme se pode constatar, 24 entidades estão em
situação de falência técnica (com fundos patrimoniais negativos) ou quase
falência (com fundos patrimoniais abaixo de metade do património). Com
contas atualizadas e com as reservas (e ênfases!) das Certificações Legais das Contas (CLC) consideradas na
melhoria da informação financeira, atrevo-me a dizer que teríamos muitas mais.
Lisboa e Vale do Tejo aparece como a região mais crítica.
|
|
|
|
em
milhares de euros |
Valores Médios |
Norte |
Centro |
LVT |
A&AL |
Nacional |
Resultado Líquido do R&C |
-2 932 |
-4 918 |
-7 025 |
-1 913 |
-4 377 |
Resultado Líquido '16
(Orçamentado) |
-7 085 |
-6 293 |
-14 462 |
-2 953 |
-5 578 |
Agravamento previsto |
142% |
28% |
106% |
54% |
27% |
|
|
|
|
|
|
EPE c/ resultado negativo
no R&C |
11 em 15 |
6 em 9 |
11 em 11 |
3 em 5 |
31 em 40 |
Os resultados são muito maus e a tendência é para piorar
porque nos últimos anos, salvo raro exceção, os resultados líquidos dos
hospitais têm sido negativos e, em muitos casos, tremendamente negativos.
Espreitando os orçamentos (ou “planos estratégicos”) que se conseguem
encontrar, vislumbra-se o agravamento destes desempenhos económicos negativos
já em 2016. E nunca é demais destacar que o resultado negativo de um exercício
económico não morre nesse período, ele ACUMULA com todos os períodos. A bola de
neve já tem um tamanho considerável, restando apenas saber para cima de quem
vai rolar, numa época em só se fala de resgate… de bancos.
Valores
Médios |
Norte |
Centro |
LVT |
A&AL |
Nacional |
PMP divulgado no R&C
(dias) |
129 |
245 |
372 |
134 |
213 |
PMP em 30.06.2016 (site SNS) |
137 |
161 |
275 |
133 |
180 |
Média > 90 dias |
47 |
71 |
185 |
43 |
90 |
|
|
|
|
|
|
N.º EPE com PMP > 90 dias |
9 em 15 |
5 em 9 |
10 em 11 |
3 em 5 |
27 em 40 |
|
|
|
|
|
|
Naturalmente, esta debilidade financeira geral dos hospitais
EPE não afeta apenas os utentes. Também os credores são penalizados conforme se
pode constatar nos Prazos Médios de Pagamento (vergonhosos) com que o setor os
presenteia. Se já estivessem disponíveis os PMP a 30.09.2016 no site do SNS o
cenário ainda seria pior, conforme se pode constatar nas páginas 45 (gráfico 23) e 64 (tabela A16) da síntese de execução
orçamental a outubro publicada pela DGO [link]. Mesmo assim, com esta informação
já dá para ver que 27 das 40 entidades têm pagamentos em atraso de acordo com o
conceito legal previsto na famosíssima Lei dos Compromissos e Pagamentos em
Atraso (>90 dias).
Quem quiser consultar os valores (astronómicos) dos passivos
em causa, em cada hospital EPE, sugiro a consulta dos quadros que constam no
ficheiro acima partilhado na introdução.
EXEMPLOS DE CANCROS QUE
PODEMOS DIAGNOSTICAR NAS CONTAS DOS HOSPITAIS
1. Muito do património imobiliário que
consta na contabilidade destes hospitais provavelmente... não lhes pertence. De
facto, são muitos aqueles que exercem a sua atividade em edifícios que não
estão formalmente registados em seu nome, nem na Conservatória de Registo
Predial nem na Autoridade Tributária. Estão contabilizados ao abrigo do “princípio da substância sobre a forma”
que... não existe no normativo POC-MS. De facto, estes imóveis, que pertencem
formalmente ao Estado (acionista único), estão registados no património dos
hospitais EPE e, presumo, também no património do próprio Estado – simultaneamente
em dois lados, portanto! Este artifício (que até pode ser legitimado, se
devidamente formalizado do "lado do Estado", porque os ativos estão
efetivamente ao serviço dos hospitais EPE) permite inventar um ativo de valor
monumental (que na realidade pertence a outra entidade) e assim mitigar os
valores dos fundos patrimoniais negativos (ou potencialmente negativos), pelo
que tenho particular curiosidade em saber como será esta questão tratada na
consolidação das contas no "Grande Balanço da Administração Pública".
Para além desta particularidade no património imobiliário dos hospitais EPE
acresce uma outra também muito relevante. A maior parte dos hospitais mais
antigos, agora incluídos nos centros hospitalares, exercem a sua atividade em
edifício(s) da Santa Casa da Misericórdia local, ou seja, em propriedade
alheia, sendo raro o anexo ao balanço que evidencie os montantes de
investimento já realizado nessa propriedade alheia, que depois de abandonada (como
tem sucedido na transição para unidades mais modernas) reverte para os seus
legítimos proprietários.
2. Na generalidade dos hospitais EPE, o
processo de circularização (confirmação externa) de saldos devedores de
terceiros não revela resultados satisfatórios, designadamente em relação a
Companhias de Seguro, a Subsistemas de Saúde (Públicos e Privados), à
Administração Regional de Saúde (da região da entidade) e nalguns casos também
em relação a outros hospitais EPE, não permitindo ao ROC concluir acerca dos
possíveis efeitos nas Demonstrações Financeiras. Nem ele, nem ninguém. Falamos
em centenas de milhões de euros de saldos a receber que podem ser colocados em
causa, quanto à sua razoabilidade (muitas vezes questionada pelos alegados
devedores) e até mesmo quanto à sua cobrabilidade (considerando a antiguidade
das mesmas e a débil situação financeira de muitos dos devedores). O cúmulo da
situação reside no facto da maioria das situações respeitar a entidades dentro
do SNS, não parecendo existir, à data, vislumbre de uma estratégia setorial
para sanear estes saldos dúbios para além de uma “Clearing House” do Ministério da
Saúde (para facilitar os encontros de contas entre entidades do SNS mas que
funciona a carvão). Porquê? Parece-me, salvo melhor opinião, por falta de
vontade. Porque no dia seguinte a uma eventual limpeza, remanesceria um
monumental buraco nas contas de muitos destes hospitais e, consequentemente, do
próprio SNS. A título de exemplo, posso referir os muitos milhões de euros de
saldos devedores da ADSE, da IASFA e da SADGNR/PSP "pendurados" nas
contas dos hospitais EPE desde 2010, ano em que os utentes destes subsistemas
passaram a ser incluídos no âmbito da faturação dos Contratos-Programa
celebrados com a ACSS. É verdade que o Estado e as instituições que o formam
têm que ser tratados como “pessoa de bem” e os hospitais EPE, nesta perspetiva
(e porque o POC-MS também não permite), não constituem provisão para estas
dívidas em mora, mas quando as entidades públicas devedoras são questionadas
acerca das respetivas dívidas por pagar aos hospitais, elas respondem... que
não devem nada. Então quem paga?
3. O principal cliente dos hospitais EPE
é a ACSS, entidade do Setor Público Administrativo que intermedeia as
transferências do Orçamento de Estado (vide parte 2 desta análise), suportadas por um Contrato Programa celebrado individualmente
com cada entidade, para cada ano. Em função do clausulado, cada hospital EPE
recebe adiantamentos mensais (daí os grandes saldos de adiantamentos de
clientes) e vai estimando a produção efetuada e respetiva remuneração, num
processo deveras complexo de compensações e penalizações. Só pode faturar à
ACSS quando ocorre a validação das verbas apuradas, o que pode demorar… anos.
Verificamos assim elevados saldos de cliente por receber (ativo), acréscimos de
proveitos ainda por faturar (ativo) e adiantamentos por regularizar (passivo).
Simplificando, em termo líquidos e em jeito de contas de merceeiro, posso dizer
que os hospitais EPE têm muito (mas mesmo muito) dinheiro a haver do Estado no
âmbito dos contratos programa que se encontram por encerrar. Apesar de, mais
acerto menos acerto (de milhões em cada hospital EPE), não se temer o não
recebimento das verbas, as administrações hospitalares lidam com outra grande incerteza…
QUANDO é que vão receber.
|
|
|
|
em
milhares de euros |
Valores Médios |
Norte |
Centro |
LVT |
A&AL |
Nacional |
Dívidas a receber de IMS |
14 670 |
25 298 |
40 006 |
49 745 |
28 765 |
Adiantamentos de IMS |
-25 306 |
-37 112 |
-78 835 |
-99 805 |
-71 717 |
Estimativa Proveitos CP por faturar |
43 216 |
27 305 |
81 726 |
10 565 |
32 858 |
nota: IMS significa
Instituições do Ministério da Saúde |
|
|
|
|
Conforme explicado nos parágrafos anteriores, persistem
muitos milhões de euros “pendurados” dentro da máquina do SNS. Convém realçar
que os valores do quadro são MÉDIAS POR CADA HOSPITAL EPE!
4. Os Anexos ao Balanço e à
Demonstração de Resultados disponibilizam, na generalidade dos hospitais EPE,
listagens de processos judiciais em curso que são enquadrados numa espécie de “passivo contingente” que não existe no
normativo POC-MS, mas que serve, em muitos casos injustificadamente, para não
constituir provisões para riscos e encargos que iriam onerar ainda mais os
resultados de cada exercício. Ao analisar as contas de determinado hospital
EPE, devemos ter e consideração este pequeno pormenor que nalguns casos pode
ser representativo de uma contingência global milionária. Entre os contenciosos
existentes, deparamos com outra situação caricata que se trata… da natureza FISCAL
de muitos deles. Hospitais EPE detidos a 100% pelo Estado estão em contencioso
fiscal contra... o próprio Estado! Relativamente a isto recomendo a leitura de
um artigo anterior do blog [link].
E OS GASTOS COM PESSOAL, COMO ESTÃO?
|
|
|
|
em
milhares de euros |
Valores Médios |
Norte |
Centro |
LVT |
A&AL |
Nacional |
Vendas e Prestações de
Serviços |
106 538 |
99 739 |
145 859 |
92 682 |
114 089 |
Custos com pessoal |
59 043 |
59 971 |
80 942 |
52 258 |
64 426 |
Número de funcionários |
2 037 |
2 093 |
2 936 |
1 907 |
2 281 |
Custo médio por funcionário |
29 |
29 |
28 |
27 |
28 |
Peso Custos c/ pessoal
s/VND+PS |
55% |
60% |
55% |
56% |
56% |
Os valores médios que constam na tabela parecem revelar um
certo desequilíbrio entre a região centro e as demais regiões, considerando a
relação entre os custos com pessoal e o volume de vendas e prestações de
serviços. Podia avançar com várias teorias possíveis para justificar o
comportamento deste indicador, mas sugiro, em vez de suposições, que a tutela
averigue a razão concreta deste facto e proceda em conformidade.
DOIS PEQUENOS GRANDES
PORMENORES PARA CONCLUIR
39 dos 40 hospitais EPE analisados prestaram contas ao abrigo
do "velhinho" POC-MS que já está completamente desvirtuado das normas
contabilísticas nacionais do privado e internacionais do próprio setor público.
Permitam-me fazer um enquadramento “histórico” do que aconteceu recentemente,
de uma forma muito simples. O Despacho n.º 1507/2014 de 16 de janeiro, dos
Gabinetes de Estado do Tesouro e do Secretário de Estado da Saúde, dispunha que
era "obrigatoriamente aplicável às entidades públicas empresariais da
área da saúde, incluindo os hospitais, os centros hospitalares e as unidades
locais de saúde o Sistema de Normalização Contabilística, aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de julho (…)” e a obrigatoriedade “(…)
iniciava-se com a apresentação de contas de 2014”. Entretanto, já decorria
2015 (na altura em que se estavam a preparar os relatórios e contas de 2014) e
isto foi adiado para a prestação de contas de 2015. Depois, já decorria 2016 e
isto foi cancelado porque ia entrar em vigor em 2017 o SNC-AP (vide artigo anterior do blog acerca do assunto). Ainda decorre 2016... e a
introdução do SNC-AP vai ser muito provavelmente adiada PELO MENOS por um ano.
Trata-se, portanto, de uma normalíssima "reforma" das normas
contabilísticas da Administração Pública. Nada de novo neste campo.
A cobertura de seguros na generalidade dos hospitais EPE
abrange apenas a responsabilidade civil obrigatória relativamente a viaturas
(imobilizado corpóreo), acidentes de trabalho (pessoal) e, eventualmente,
dadores de sangue. Não existem, portanto, seguros que cubram o património
(móvel ou imóvel) nem outros géneros de responsabilidade civil em termos
genéricos (por se tratarem de locais públicos sujeitos a acidentes nas suas
instalações que podem afetar terceiros) e específicos do setor (por se tratarem
de instituições do setor da Saúde, responsável pelos serviços que presta aos
utentes em complemento com a responsabilidade profissional dos médicos). Apesar
de não existirem consequências desta situação ao nível das demonstrações
financeiras, muitos ROC alertam para os riscos que podem advir para as entidades
na eventual ocorrência de sinistros não segurados, especialmente os de grande
magnitude que podem afetar um ou vários serviços, tanto em termos materiais
como humanos. Do lado dos hospitais EPE, a ausência das mencionadas coberturas
de seguro é geralmente justificada: pela importância consensual em termos
sociais da atividade pública que desenvolvem; pela capacidade do acionista (Estado)
em assumir eventuais perdas resultantes dos acontecimentos seguráveis e
previsível aceitação em repor a continuidade da atividade nesses casos; e pelo
elevado preço a pagar pelas apólices, em contextos (recorrentes) de limitação dos
custos operacionais e restrição orçamental. Mas pergunto uma vez mais, se o
Estado não paga o normal, pagará o anormal? Claro que sim… mas QUANDO?